“Por que os brasileiros estão celebrando essa imagem?”, perguntou meu amigo americano sobre a foto da réplica da Estátua da Liberdade caída em frente a uma loja Havan, em Capão da Canoa, no Litoral do Rio Grande do Sul, nesta segunda-feira (24). A imagem viralizou nas redes sociais e foi publicada por celebridades e políticos no país. “Um novo mundo é possível”, postou o ator Gregório Duvivier para mais de um milhão de seguidores no Instagram.
Símbolo da rede varejista, a estátua caiu em decorrência de rajadas de vento de 75km/h na região. Não houve feridos no incidente.
Explicar para um norte-americano que, ao celebrar a queda da réplica, os brasileiros não estão, necessariamente, aplaudindo a derrocada do maior ícone da democracia estadunidense não é tarefa das mais fáceis.
Para cortar caminho, comparei Luciano Hang, ou o Véio da Havan, com Mike Lindell, mais conhecido como My Pillow Guy, empresário do ramo de travesseiros que apoiou Donald Trump em sua campanha presidencial. Luciano Hang é o My Pillow Guy de Jair Bolsonaro, guardada as devidas proporções.
Por que ele tem a Estátua da Liberdade na entrada da loja? Eu, que nunca pisei em uma loja Havan e só conhecia Hang por memes, fui buscar a explicação na internet: “A nossa Estátua da Liberdade faz o maior sucesso entre nossos clientes. Ela representa o liberalismo econômico e a liberdade do cidadão, fatores que eu sempre defendi”, diz o empresário.
Nessa pesquisa, descobri também que não era a primeira vez que a estátua da Havan enfrentava uma queda. Em 2019, a réplica da loja de São Carlos, interior de São Paulo, sofreu um incêndio criminoso, segundo a polícia local. Os suspeitos não foram localizados.
Além da controversa estátua, as lojas da Havan tem também arquitetura que imita a Casa Branca e escadarias que remetem ao clássico do cinema “E o Vento Levou”. O fascínio declarado pelos ideais dos Estados Unidos, e o apoio do empresário ao presidente mais impopular da história do Brasil, fizeram de Lang um dos personagens mais detestados da esquerda brasileira.
Mas a explicação parece ainda não convencer meu amigo da Califórnia a separar a imagem da réplica da Havan do simbolismo histórico da estátua original, um presente da França para o povo dos Estados Unidos.
Erguida em 1886, a figura de Libertas, deusa da liberdade romana, segura uma tocha com a mão direita, e na mão esquerda carrega uma tabula com a data da Declaração de Independência dos EUA. Uma algema e uma corrente quebradas estão a seus pés enquanto ela caminha para frente, comemorando a abolição nacional da escravidão. A estátua se tornou o maior ícone da liberdade dos Estados Unidos, vista como um símbolo de boas-vindas aos imigrantes que chegam por mar.
Daí o desconforto em vê-la caída, humilhada em uma onda de bullying viralizada por meus conterrâneos. Lembrando que os brasileiros estão entre as nacionalidades que mais visitam Nova York, foram cerca de 920 mil turistas em 2018. No início de maio, o prefeito Bill de Blasio anunciou que, mesmo vindo de um país com alto nível de contágio, os brasileiros são bem-vindos na cidade, liberando a vacinação contra o Covid-19 para não residentes.
Nesse contexto, é como se para os brasileiros existissem dois Estados Unidos: um que vale a viagem de férias e que produz líderes como Barack Obama, e estrelas como Leonardo diCaprio e Beyoncé; outro que pertence a Trump e, por consequência, aos bolsonaristas, ao Véio da Havan, e que merece ser cancelado.
No feed da ex-deputada Manuela D’Ávila, afiliada do PCdoB (Partido Comunista do Brasil), a celebração dos ventos que derrubaram a Liberdade não surpreende. O Marxismo, como se sabe, combate os ideias do sistema capitalista, incluindo o mercado livre e a democracia. Mas um comentário no post dela no Instagram me chamou a atenção. “Wind of Change” (Ventos da Mudança em inglês), alguém relaciona a queda da Estátua da Liberdade ao maior hit da banda alemã Scorpions.
O assobio que introduz a balada escrita por Klaus Meine em 1990 é como um túnel do tempo para quem viveu os anos, não tão remotos, da Guerra Fria. O som fez parte da minha adolescência e está ainda fresco na memória depois de ouvir o fascinante podcast do jornalista Patrick Radden Keefe, no Spotify, sobre o papel do rock nos últimos dias do comunismo alemão e soviético. Colaborador da New Yorker, Keefe embarca em uma jornada de oito episódios em busca da origem e dos impactos de “Wind of Change” em eventos históricos como a queda da URSS.
Seguindo rumores de que a música teria sido escrita com a ajuda da CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos, com o objetivo de infiltrar valores norte-americanos em territórios comunistas, cada episódio estimula reflexões sobre o poder da cultura de influenciar corações e mentes. A exemplo do Scorpions, que mesmo com a sua música proibida por trás da Cortina de Ferro, fez “Wind of Change” viralizar nos moldes da época, por meio da distribuição clandestina de fitas cassetes. A música serviu de inspiração para milhões de jovens soviéticos da era perestroika, que por seis anos buscaram se libertar do governo tirano da URSS. O fim da União Soviética veio um ano depois do lançamento do hit, em 26 de dezembro de 1991.
Daí que diante da imagem da Estátua da Liberdade caída, e ao som libertador dos Scorpions, eu ainda não sei como explicar ao meu amigo gringo para onde sopra o “Wind of Change” do Brasil.